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Númeno de Ouro

Númeno. Isto mesmo, com "ene", você leu certo. Quero usar este termo significando "a coisa em si" (extraído da filosofia kantiana), de forma a diferenciar do significado (já por demais construído no imaginário comum) para o famigerado Número de Ouro:

Também chamado de Número Áureo, é geralmente representado pela aproximação: 1,618... e pela letra grega phi. Em questão de proporção, isto significa que, por exemplo, um retângulo que tenha sua largura igual a 1 e comprimento igual a aproximadamente 1,618... tem estas dimensões proporcionadas segundo o Número de Ouro.

O Número de Ouro e sua aplicação para construção de proporções entre medidas evoca uma associação com a perfeição. E o desenho do violino não demora a ser uma associado a ele. Volta e meia me vejo entrando numa conversa que alguém elogia as qualidades bem proporcionadas do violino, em especial, a voluta, que diz "ter tudo a ver com a série de Fibonacci". Eis algo que habita o imaginário comum. E já queria deixar bem claro que: a voluta (abaixo, voluta do Kurtz (1570) de Andrea Amati - Fonte: Tarisio) tem sua geometria baseada em princípios bem diferentes da espiral obtida com a série de Fibonacci (abaixo - Fonte: SuperInteressante).


Não há relação geométrica entre uma voluta e uma espiral áurea.

Certo... mas quer dizer que em nenhum outro momento do desenho do violino se encontra a tal divina proporção? Somente em 2016 pude encontrar uma base sólida para dizer que sim. Qual foi minha supresa ao começar a ler o Traité de Lutherie de François Denis (2006, em inglês) e encontrar uma seção inteira dedicada ao The Mith of Golden Number (O Mito do Número de Ouro)! Finalmente encontrava um meio de chegar ao númeno da questão. Este tratado é muito completo e esclarecedor, especialmente, porque dá ferramentas necessárias para entender geometria (o que é proporção, o que é uma seção, etc. etc...) antes de começar a desenhar instrumentos.

Acontece que a luteria se utiliza, sim, de relações de proporção e de seções. Uma delas é chamada de Seção Geométrica, obtida com régua e compasso, que envolve o uso do Número de Ouro.

Uma das grandes felicidades do luthier, ao ler este tratao, será encontrar como desenhar 7 modelos de instrumentos com as bases geométricas.: de Andrea Amati, Antonio e Girolamo Amati, Andrea Guarneri, Joseph Guarneri e Domenico Montagnana. O modelo geométrico dos violinos de Andrea Amati é um exemplo excelente para tratar de questões geométricas, que foram grandemente investigadas no período imediatamente anterior, chamado Renascença italiana. Mas não dá pra misturar Leonardo DaVinci e Fra Luca Pacioli (os dois usaram e escreveram sobre o desenho nos moldes da divina proporção) com Andrea Amati tão rapidamente.


Acontece que, de acordo com o tratado, o Número de Ouro é envolvido em apenas um momento durante o desenho do modelo Andrea Amati -- para determinar a proporção entre as seguintes medidas: a medida da largura mínima da cintura até o olho superior da éfe (2 - phi) e a medida da largura mínima da cintura até a largura máxima do bojo inferior (phi - 1). E o Número de Ouro somente aparece como resultado da aplicação da Seção Geométrica:

Segui as orientações de Denis para desenhar este modelo, mudando a referência de mensur para o padrão moderno (195mm) e obtive as seguintes medidas: 29mm (medida da largura mínima da cintura até o olho superior da éfe) e 46,9mm (distância da largura mínima da cintura até a largura máxima do bojo superior). Estas duas medidas guardam uma proporção geométrica, relativa ao número phi (número de ouro).


Para obter as (dezenas) de outras medidas que compõe as proporções entre partes do violino, no caso, no modelo de Andrea Amati, outras seções são usadas. Uma das mais presentes na construção de Andrea Amati é a seção em partes inteiras, como exemplo o comprimento do corpo que é: 3/5 composto pelo comprimento do bojo superior mais o comprimento da cintura, enquanto que 2/5 composto pelo comprimento do bojo inferior. Ah! Isto é a medida desconsiderando laterais e borda. Lembre-se a construção cremonesa acontece de dentro para fora desde o desenho (o desenho obtido é o desenho da forma interna). E é marcada pelo uso de proporções obtidas por Seções. Uma delas, a Seção Geométrica.

As Seções eram formas de obter medidas a partir de uma referência, por exemplo, dividindo um segmento de reta em partes. As partes divididas guardam certa proporção dependendo do procedimento usado. O número de ouro é obtido a partir de um procedimento específico de desenho com régua e compasso.

Complicado? Ainda mais para nós hoje em dia, que estamos habituados ao sistema métrico. O processo de medição, neste sistema, é dado sempre em referência a um padrão (como o metro, de que derivam centímetro, milímetro, etc.). No processo de desenho com régua e compasso, a medição e a medida não estão separados. A medida é "criada" durante o processo de medição. Noutras palavras, ao executar o desenho com régua e compasso uma medida é criada proporcional a outra.

 

O tal livro (Tratado de Luteria): François DENIS. Traité de Lutherie: The Violin and The Art of Mesurement. 2006.


Foto da voluta do violino Kurtz de Andrea Amati: Reprodução de Tarisio. Disponível em: tarisio.com/cozio-archive/property/?ID=40073. Direitos reservados.


Foto da espiral áurea: Reprodução de Super Interessante. Disponível em: super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-e-a-sequencia-de-fibonacci/. Direitos reservados.

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